Essa é uma história sobre revoluções, caminhos cruzados e alianças improváveis. Boa leitura.
Hungria - 1949
Terminada a Segunda Guerra Mundial, o Comunismo se instala; e o futebol, bastante popular no país, começa a ser usado como ferramenta de propaganda do regime. Gusztáv Sebes, vice-ministro de desportos do país, é conduzido ao cargo de treinador da seleção nacional e começa a implantar o mesmo sistema que rendeu, nos anos 30, duas Copas do Mundo à Itália. Neste sistema, o elenco da seleção se resumia a uma ou, no máximo, duas equipes. A diferença é que, no caso Húngaro, essa mudança se dá bem ao estilo Comunista: “Imposição Incondicional”.
Assim, o Kispest AC, até então um modesto membro da Liga Húngara de futebol, vê sua história mudar, radicalmente. Sua estrutura é “nacionalizada” pelo exército e, como em uma guerra, os melhores jogadores do país são convocados, não para pegarem em armas, mas para abandonarem seus clubes e se juntarem ao elenco, que já contava com József Bozsik e um jovem promissor chamado Ferenc Puskas.
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Bozsik e Puskas |
Nasce então, de uma forma pouco ortodoxa, um time que revolucionou o futebol moderno, introduzindo o esquema 4-2-4, que encantou o mundo com sua técnica impecável e rigor tático sem precedentes. Começa a era dos “poderosos Magyares” da seleção da Hungria e do recém rebatizado BUDAPEST HONVÉD FC.
“Nós não falávamos muito sobre política; Na verdade, não nos importávamos com isso. Estávamos ali, vivendo nossas vidas. Só queríamos jogar futebol.” – Ferenc Puskas
Desta forma, a seleção nacional vive a sua fase áurea no futebol conquistando as Olimpíadas em 1952, a Copa da Europa Central em 1953, além de ser o primeiro país não-britânico a vencer a Inglaterra, em Wembley. Eles também mantiveram uma incrível invencibilidade de 5 anos (ou 32 jogos), até a Alemanha Ocidental conseguir o que parecia impossível e vencer o esquadrão de Puskas na Copa de 1954, em um jogo que até hoje é lembrado como “O milagre de Berna”. O Honvéd, também, já nasce vencedor, levando o Campeonato Nacional em 49, 50, 52, 54 e 55.
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Os poderosos Magyares na Copa de 1954 |
Em 1956, o Honvéd se classifica para a segunda edição da Liga dos Campeões da Europa e vai à Espanha no dia 1° de Novembro, para o jogo de ida contra o Atlhetic Bilbao. Enquanto isso, na Hungria, o que parecia ser um protesto isolado de estudantes, ganha o apoio de rádios, jornais e de grande parte da população do país, que deseja se livrar do domínio comunista e instaurar uma democracia.
O Campeonato Húngaro é interrompido.
Tanques de guerra Soviéticos invadem Budapeste.
O Honvéd perde na Espanha por 3 x 2.
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Capa da TIME - janeiro de 57 e Budapeste tomada pelos tanques: A bandeira Hungara com o brasão comunista arrancado era o símbolo da revolução |
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O começo do fim...
Em vista da situação em que se encontrava o país, a realização do segundo jogo na Hungria era impossível. As duas equipes, Atlhetic Bilbao e Honvéd, chegam a um acordo e a partida acontece na capital belga, Bruxelas. O jogo termina no empate de 3 x 3 e na eliminação do Honvéd da competição.
Antes da revolução explodir, o Honvéd conseguira uma licença para permanecer no exterior até Março de 1957. Béla Guttmann, treinador da equipe, acerta uma “mini turnê”, que passou por Portugal, Espanha e Itália (destaque para o empate de 5 x 5 com o Real Madrid). O governo interino, que agora controla o país, ignora a licença e ordena o retorno imediato da equipe. Liderados por Puskas, todos viram às costas para o presidente do clube e, como protesto pelo golpe de estado, decidem continuar a excursão. A Federação Húngara, agora totalmente controlada pelos Soviéticos, recorre à FIFA, que prontamente, interfere. O clube é desfiliado e oficialmente não existe mais. Qualquer clube que desobedeça a proibição de jogar contra o Honvéd, terá o mesmo destino.
Um fim triste e precoce para uma equipe que mudou a forma como o futebol era visto e jogado. O Honvéd FC, que encantara o mundo por mágicos 7 anos, agora jaz no limbo e carrega consigo o rótulo de time proibido.
Mas... e o Brasil?
Notícias correm o mundo, dando detalhes da praça de Guerra que se tornou Budapeste. A imprensa esportiva dedica grande cobertura à história do Honvéd e de seus jogadores, que tentam resgatar suas famílias da Hungria, sem muito sucesso. A Europa permanece em cima do muro e não se envolve abertamente na questão, temendo receber as tão alardeadas punições da FIFA.
O alento vem do outro lado do Atlântico. O México, numa atitude corajosa, oferece asilo político a toda sua delegação, além de bancar a entrada do Honvéd no campeonato local. Logo em seguida, o clube recebe um convite do Flamengo para uma série de amistosos. O convite é aceito prontamente e os Magyares partem para o Brasil.
Rio de Janeiro – 1957
O Honvéd é recebido no aeroporto do Galeão pela imprensa e por uma multidão de curiosos, ansiosos para ver de perto o tal “time proibido dos soldados”, que estampava as manchetes esportivas da semana. A despeito de uma possível punição, o Botafogo aceita participar da festa e, juntamente, com o Flamengo, toma partido da organização das seis partidas que se seguem:
19 de Janeiro de 1957
Flamengo e Honvéd fazem um verdadeiro espetáculo no Maracanã, para a alegria de 110 mil sortudos que, estarrecidos, viram o Flamengo de Evaristo vencer o aclamado melhor time do mundo e levar a “Taça Ponto Frio”, especialmente confeccionada para a ocasião.
Final: Flamengo 6 x 4 Honvéd.
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O craque Evaristo - que na época ainda não era "de Macedo" - e a Taça |
Um detalhe curioso: a derrota na Copa de 50 e a eliminação em 54, deixaram o país mergulhado em uma “crise de vira-latas” tão forte que, parte da população, e mesmo da imprensa, não acreditou que aquele time que acabara de levar seis gols no Maracanã era realmente o lendário Honvéd. A resposta veio no segundo jogo.
27 de Janeiro de 1957
Uma semana depois, as equipes voltam a se enfrentar, dessa vez no Pacaembu. O Honvéd vence, convence e devolve o placar do Maracanã. Dessa vez, ninguém levantou suspeitas sobre a autenticidade da equipe.
Final: Flamengo 4 x 6 Honvéd.
2 de Fevereiro de 1957
De volta ao Maracanã, é a vez do Botafogo, de Garrincha e Didi. Quem teve oportunidade de assistir a essa partida, garante que foi um dos melhores jogos que o Maracanã já recebeu. O equilíbrio permaneceu até os 40 minutos do segundo tempo, quando Puskas recebe a bola, invade e marca, dando números finais à partida:
Final: Botafogo 2 x 3 Honvéd.
7 de Fevereiro de 1957
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O combinado: Elenco de seleção |
O time vinha sendo ajudados por Húngaros, que residiam no Rio de Janeiro e eram simpáticos à revolução. A essa altura, alguns jogadores já tinham conseguido tirar suas famílias da Hungria, contando com a ajuda clandestina de amigos que ficaram no país. Outros não tiveram a mesma sorte e sabiam que em algum momento, teriam de voltar.
Flamengo e Botafogo unem seus elencos e formam um combinado. Funcionários dos dois clubes cuidam da venda dos ingressos, da comida e até da limpeza do estádio, já que a Federação resolveu não se envolver, diretamente, na organização da partida.
Começa o jogo e logo fica claro que nem mesmo uma lenda poderia resistir a uma linha de frente formada por Paulinho, Evaristo, Dida, Garrincha e Didi.
Final: Combinado 6 x 2 Honvéd.
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O jogo ganhou a capa da Manchete Esportiva |
Faltam duas partidas para que se cumpra o acordo de amistosos com a equipe de Puskas. Seria uma situação corriqueira, se não fosse o fato de que, caso as ameaças da FIFA fossem cumpridas, esses seriam os últimos jogos da existência do Honvéd. As equipes decidem realizar as partidas em território neutro e partem para a Venezuela.
Caracas – 1957 – Estação derradeira
Puskas e Kocsis recebem propostas da Espanha. Grosics, o goleiro, já tinha assinado um pré-contrato para jogar no Flamengo em 58. Mas a situação está longe do ideal e os dias que se seguem na capital Venezuelana são de incerteza e tensão.
16 de Fevereiro de 1957
O estádio da Cidade Universitária é o palco. As equipes fazem o que se espera delas e o grande público presente não se decepciona, sendo testemunhas de mais um grande jogo.
Flamengo por 5 x 3 Honvéd
Szomorú vége – Triste fim
O empate em 1 x 1 entre Flamengo e Honvéd, no dia 19 de Fevereiro de 1957, marca definitivamente, o fim do Esquadrão Magyar. O destino da delegação está selado e cada membro da equipe toma um rumo distinto à partir daí.
Béla Guttmann, o técnico, retorna ao Brasil e é campeão estadual dirigindo o São Paulo em 1957.
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Guttmann no comando do Tricolor Paulista |
Gyula Grosics não resiste à saudade de seu país e retorna à Hungria. O pré-contrato com o Flamengo é desfeito.
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Grosics em ação |
József Bozsik, László Budai e Gyula Lóránt seguem o mesmo caminho e voltam ao seu país, cumprindo suspensões de até dois anos. Alguns outros conseguem contrato com equipes menores da Europa ocidental.
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Budai e Lóránt |
Zoltan Czibor e Sandor Kocsis assinam contrato com o Barcelona e permanecem na Espanha até o fim de suas carreiras.
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Czibor e Kocsis |
Ferenc Puskas, o maior jogador Húngaro de todos os tempos, é suspenso do futebol por um ano e meio e depois, vai fazer história no Real Madrid.
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Puskas em Madrid |
Flamengo e Botafogo não recebem punição alguma.
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Dequinha e Nilton Santos | |
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Situações como essa, onde esporte e política se cruzam, ainda irão se repetir por muitas vezes pelas décadas que virão. Independente do contexto em que elas ocorram, o esporte sempre acabará sendo o maior prejudicado.
Em 1958, a FIFA decide voltar atrás e retirar o Honvéd da ilegalidade. Mas, à essa altura, daquela equipe mágica, do verdadeiro Honvéd, só sobrou o nome, as lembranças e as histórias, como essa, que ainda serão escritas, enquanto houver gente disposta à correr os ríscos necessários; e que ainda serão contadas por anos e anos, enquanto houver gente disposta à ouví-las.